Relato de experiência: uma história sobre amor e esperança na pandemia do Covid-19
Não consigo me lembrar exatamente quanto tempo levou entre a internação na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e o dia de sua morte, mas guardo comigo lembranças do que se passou no período em que pude acompanhar Juliana e sua família.
Todas as tardes eu ligava para as famílias dos pacientes da UTI Covid-19, buscava conhecer sua dinâmica de vida, o vínculo estabelecido com o(a) paciente, sua experiência diante de tudo que estava acontecendo. Escutava e acolhia suas angústias e dúvidas, buscava sanar aquilo que estivesse ao meu alcance e, quando não era possível, pedia auxílio da equipe. Abro um parêntese para dizer que trabalhei ao lado de grandes profissionais e aprendi incomensuravelmente com cada um deles.
A família de Juliana era especialmente exigente, questionava os mínimos detalhes, queria saber tudo o que pudesse, e às vezes até mais do que podia compreender. Eu compreendia essa atitude pois sabia que era o único controle que poderiam ter sobre a situação - saber o que estava acontecendo.
Eu agendava visitas presenciais sempre que possível - do esposo, da irmã. Imprimia imagens e orações enviadas pela família e colocava próximo ao leito. No percurso de sua internação, ocorreram muitas pioras e intercorrências.
Juliana era um caso extremamente grave, apesar de ser uma paciente muito jovem, previamente saudável, sem histórico de adoecimento, esteve sob ventilação mecânica em altos parâmetros, sem interação com o meio, sob sedação contínua, sob uso de drogas vasoativas. Ao longo da internação, apresentou intercorrências e pioras gravíssimas. Precisou ser traqueostomizada. Continuou sob ventilação mecânica e, aos poucos, conforme redução dos sedativos, começou a ter interação com o meio, a reagir aos estímulos da equipe.
Uma tarde, quando cheguei ao seu leito para atendê-la, me surpreendi ao vê-la assistindo Grey’s Anatomy na Netflix, empunhando o controle, navegando pela plataforma sem dificuldade nenhuma. Na tela, uma cena típica do ambiente hospitalar se desenrolava. Olhei para Juliana – em leito de UTI, traqueostomizada, em ventilação mecânica, com diagnóstico de Covid-19 e insuficiência respiratória em plena pandemia, me mostrando – e a toda a equipe – que a vida poderia vencer, apesar das adversidades.
Com sua melhora e interação com o meio, passei a realizar videochamadas para que Juliana pudesse ver sua família - sua mãe, seu esposo, seu filho pequeno. Juliana era alegre, brincalhona, espontânea. Eu gostava muito de atendê-la, apesar de sua situação complexa, demonstrava leveza e tranquilidade.
Era reconfortante poder ligar para a família no fim de todas as tardes e repassar notícias otimistas. Assim como para a família, crescia em mim a esperança de vê-la recuperar-se e receber alta da UTI nas próximas semanas. Juliana estava respirando espontaneamente há alguns dias e, apesar da traqueostomia, estava recomeçando a se alimentar com auxílio da equipe.
Em uma sexta-feira de manhã, Juliana solicitou urgentemente ver sua família. A equipe solicitou que eu fosse à Unidade em um horário não convencional para mim (eu costumava ir de tarde), mas que devida urgência, resolveram me chamar. Nesse dia, fizemos três videochamadas – Juliana viu seus familiares, conforme era seu desejo, e se acalmou após.
À tarde, quando liguei para sua família, foi uma ligação leve e cheia de esperança - parecia que o pior realmente havia passado! A família me perguntou sobre possibilidade de alta da UTI, ao qual respondi com orientações do funcionamento do setor que receberia Juliana quando ela tivesse alta, e informei que, caso isso acontecesse, eu iria vê-la no outro setor, na segunda-feira.
Lembro de encerrar meu expediente com a alegria da recuperação de Juliana. Alegria que foi destruída no domingo de manhã, com a notícia de sua morte e o pedido da equipe de que eu fosse até o hospital para atender a família que se deslocava para obter informações sobre Juliana.
Ao chegar ao hospital, juntamente com uma colega do Serviço Social que também acompanhava o caso, organizamos o ambiente onde atenderíamos a família de Juliana, conversamos com a equipe e o profissional que comunicaria o óbito à família.
O profissional médico explicou cada detalhe da intercorrência que havia iniciado na tarde do sábado, esclarecendo cada uma das dúvidas pacientemente. De forma sensível e humana, informou mãe, esposo e irmã sobre a morte de Juliana. Foi um momento desolador, de dor, desespero, tristeza. Ouso dizer que é impossível descrever. Também me doeu – apesar de eu saber que minha dor era ínfima em relação à dor daquela família. Também senti a dor dos colegas, profissionais que a atenderam até o fim.
Como era característico e esperado, sua irmã expressou sua revolta com a morte. Questionou cada minucioso detalhe. Questionou onde estava o médico que acompanhava Juliana desde o início - expliquei que não estava de plantão, mas que garantiria um contato dela com ele no dia seguinte.
Seu esposo e mãe estavam em frangalhos, chorando copiosamente. A eles, ofereci minha presença, acolhimento e respeito.
Me autorizei, como psicóloga, a falar em nome de Juliana – ao seu esposo – sobre o amor dela para com ele, que ela havia dito para mim em atendimento. Que ele era o amor de sua vida. Que ele cuidava muito bem do filho deles. Em nome do amor que eu sabia existir e em favor da elaboração do processo de luto. Não contive as lágrimas que escorriam pelo meu rosto – fui honesta com meus sentimentos e acredito que isso tenha sido importante para transmitir o que eu precisava. E isso me trouxe paz.
Acompanhamos a família até o necrotério para que vissem Juliana e se despedissem. O período de contágio do Covid-19 já havia acabado e, portanto, a família pôde se despedir e realizar os rituais de despedida não apenas no hospital, mas também fora dele. Me comoveu ver como a equipe havia preparado Juliana com carinho e afeto, pela forma como a arrumaram, como dispuseram seus pertences (fotos, mensagens, terço) - esse cuidado traduziu, para mim, a dor da equipe em perder essa paciente. Lá, a dor da família se multiplicou e foi impossível conter as lágrimas que, em silêncio, permiti que escorressem pelo meu rosto. Estar em contato com minhas próprias emoções não me impediu de estar presente, com atitude de escuta e acolhimento para com aquela família.
Depois, eu e a Assistente Social orientamos sobre os encaminhamentos fúnebres, a liberação para realizar o funeral, a despedida.
No dia seguinte, garanti a conversa da familiar com o médico, conforme solicitado e descrito acima. O profissional foi aberto para essa conversa, como era característico seu, ouviu-a a esclareceu todas as dúvidas de forma sensível e humana.
Alguns detalhes da história foram resguardados para evitar personalização e identificação.
Quando acompanhei essa história, em 2021, eu era psicóloga hospitalar há 4 anos, já trabalhava na linha de frente da pandemia há mais de 1 ano e, a essa altura, já estava muito transformada por essa experiência. Não existe neutralidade quando você trabalha com pessoas. Costumo dizer que a pandemia me tornou uma pessoa e profissional mais humana, mais sensível, mais urgente para a vida, para o afeto.
Essa é uma das histórias que mais me marcou e escrevê-la é uma forma de honrar Juliana, sua família e todos os profissionais dedicados ao seu cuidado e tratamento, independente do desfecho. Eu sei que cada um fez o seu melhor.
Psicóloga Daniela Filipini - Especialista em Psicologia Hospitalar
CRP 08/40303
